Comer ou não da árvore do conhecimento? Desafio ao livre-arbítrio - Rogério Miguez
Na mais antiga obra que norteia o pensamento religioso do mundo ocidental, a Bíblia Sagrada, logo no seu início, é apresentado aos humanos – Adão e Eva – um dos maiores dilemas que nos acompanham até os dias de hoje: como usar o livre-arbítrio com sabedoria.
Dentro da concepção criacionista, após a formação da Natureza, Deus criou aqueles destinados a povoar a Terra, mas advertiu tanto o homem quanto a mulher sobre a proibição de comer da árvore do conhecimento do bem e do mal no Jardim do Éden; caso o fizessem, seriam mortos.1
Lembrando apenas uma das judiciosas observações feitas por Allan Kardec na obra A Gênese sobre o caso em exame, indaga-se: de que valeria Deus ameaçar de morte Adão e Eva se eles acabavam de ter sido criados e, desta forma, não poderiam jamais entender o que representava a morte!?
Mas, deixando de lado as questões controversas do Antigo Testamento, podemos afirmar que, por esta narrativa, surgiu simbolicamente o primeiro caso concreto sobre a questão da tentação na obra mais lida, vendida e traduzida no mundo; contudo, os envolvidos falharam de imediato nesse primeiro teste para a Humanidade. Buscaram responsabilizar a pobre serpente, sabemos, sem êxito, afinal, haviam recebido uma ordem direta de Deus sobre esta proibição. E foram todos punidos por diversas formas.
É inegável que já havia humanos antes desse evento mencionado na Bíblia, não só no Ocidente, bem como no Oriente, e existiam também escritos mais antigos do que os contidos nesse livro dito sagrado e, não há dúvida, o exercício do livre-arbítrio já vinha sendo praticado milênios antes.
De lá para cá, desenvolvemos mais ainda o livre-arbítrio - possibilidade de decidir, escolher em função da própria vontade, sem influência de qualquer condicionamento, motivo ou causa determinante -, pois evoluímos no conhecimento das coisas, aumentamos a nossa inteligência a níveis jamais imaginados no passado e, com estas conquistas construídas pelos nossos próprios esforços, indagamos: quantas escolhas fizemos e continuamos a fazer? Incontáveis!
A maioria já esteve na Terra por diversas vezes, experimentando reencarnações consecutivas em diversos locais, épocas e culturas, contudo, observando o nível médio moral e ético desta Humanidade, só podemos concluir que as escolhas têm sido feitas, geralmente, no sentido de desobedecer a centelha divina comendo da árvore do conhecimento, ou seja, temos usado o nosso livre-arbítrio repetindo erros antigos, senão a Terra já seria o Jardim do Éden, e não o que somos obrigados a conviver hoje em dia. Apenas para exemplificar, há aproximadamente 120 conflitos armados envolvendo 31% dos países do mundo.2
E o que falta para transformar a Terra no Jardim do Éden, em um mundo Celeste ou Divino?
É preciso que todos os Adões e Evas modernos façam melhores escolhas, usem o livre-arbítrio para vivenciar apenas o bem, e não o mal, com vontade férrea, constantemente, contudo, os Espíritos formadores desta Humanidade ainda são fracos, hesitantes, pusilânimes, e se deixam levar, frequentemente, pelo quase irresistível canto da sereia – teses e doutrinas nebulosas e permissivas de toda ordem que se apresentam aqui e ali - criando, desta forma, em função de suas falhas morais, mares turbulentos e bravios em que se afogam, com constância, retornando, ciclicamente, a mundos materiais, como este, para refazer condutas, resgatar faltas, reparar incontáveis males perpetrados contra o próximo em suas jornadas terrenas anteriores. Este é o cenário atual, ainda estamos em um mundo de provas e expiações.
Como Adão e Eva que se descobriram desnudos, imediatamente após desobedecerem o Criador, os habitantes da Terra, também ainda se surpreendem, ao se enxergarem desnudos, mas não de roupas, como o casal bíblico, mas de virtudes, entretanto, fartamente vestidos de hipocrisia, vilanias e corrupção e, em conformidade com esta realidade, complementam suas vestes com os acessórios da mentira, perfídia, sensualidade, vícios de toda ordem e, por último, não que seja menos relevante, a crueldade da indiferença diante de tantas injustiças vigentes, com raras exceções, é claro.
O mundo assiste boquiaberto o festival de iniquidades de todas as partes e, sem ídolos, com escassos modelos vivos que possam servir de inspiração para cultivar o dever de acertar, deixando de lado, definitivamente, o ilusório direito de errar, delinquem, como todos, afinal, se a maioria privilegia o mal, por qual razão também não posso agir, falar e pensar da mesma maneira?
Em consequência, o uso do livre-arbítrio está contaminado pelo excesso de condutas malsãs que pontilham o nosso cotidiano, e para se certificar desta triste realidade, destes muitos pecados, basta assistir os noticiários das redes televisivas.
Que encruzilhada vive esta Humanidade!? Qual direção tomar, quais condutas adotar para conquistar um pouco de paz de espírito, como usar o livre-arbítrio, sabiamente, nestes tempos turbulentos?
O nosso destino é construído, paulatinamente, pois, ao fazermos escolhas, criamos o nosso futuro, como se denota em:
Diariamente criamos destino, porquanto, em cada hora de luta, é possível renovar as causas a que se nos subordinam as circunstâncias da marcha.3
Muitas destas circunstâncias da marcha foram delineadas ainda na erraticidade, quando aguardávamos para voltar às lides terrenas e, em conjunto com os guias espirituais, definimos grandes marcos da futura e promissora jornada na Terra, sobre: família, profissão, doenças, tempo de vida, tipo de morte, riqueza ou pobreza, mas as leis divinas permitem que modifiquemos estas significativas provas, expiações ou missões, não todas, é fato, pois algumas permanecem apesar de nossos melhores esforços em alterar o modo como se manifestam no cotidiano.
Tomemos como exemplo a duração da existência e o tipo de desencarnação, previamente acertados. Quando o Espírito inicia a sua nova trajetória terrena tem diversas estradas a seguir e pode escolher adotar o modismo de ingerir bebidas alcoólicas, para se sentir aceito por seu grupo social. Havia também a previsão do surgimento de uma doença em um certo período da vida, mas sem gravíssimas consequências e a morte acabaria se dando por causas naturais. Entretanto, com a acentuada ingestão de alcoólicos, rotineiramente, antecipa o surgimento da doença expiatória, surgindo mais grave do que era previsto. Com o passar do tempo, o corpo vai se enfraquecendo, sua capacidade de gerar e armazenar fluido vital vai diminuindo e, como resultado final, ocorre a desencarnação prematura, não natural, fora do tempo, por força da pujança da doença, não há dúvida.
Considerando o outro lado da moeda, se este mesmo Espírito mantém uma conduta regrada, equilibrada, com hábitos moderados, sem exageros na alimentação, nenhum uso de drogas lícitas ou ilícitas, trabalhando dentro de suas atribuições com zelo e respeito, sem reclamações contra tudo e contra todos, mente higienizada dos vícios mentais tão comuns em nossa sociedade, entre outras atitudes recomendadas pela moral e pela ética, aquela doença que surgiria em determinada fase da vida, pode ser adiada e, mesmo quando surgir, poderá ter seus efeitos atenuados. Como dádiva final, a hora da morte também poderá ser postergada, através de uma moratória, ou seja, o grande marco de vida representado pela sua duração, é alterado, pelo uso do livre-arbítrio, por quem optou em não comer o fruto da árvore do bem e do mal.
Podemos ressaltar este princípio divino por esta outra citação:
O determinismo não é absoluto, em face dos recursos do livre-arbítrio que está sempre alterando o destino e os rumos da vida. O renascimento, algumas ocorrências e a desencarnação constituem fatalismo durante cada existência corporal.4
Ao citar a desencarnação como episódio fatal, o autor não invalida os exemplos anteriormente apresentados, pois de fato, muitas desencarnações se darão, exatamente, conforme previsto, outras não e, além disso, o processo de desencarnação é certo para todos, ninguém se esquivará deste fatalismo. Pode-se alterar o quando e o como, mas nunca o desfecho em si.
É por isso que fatalidade e livre-arbítrio não são conceitos antagônicos, coexistindo nos menores ângulos durante as nossas jornadas planetárias.
A propósito, não há nenhuma sustentação na Bíblia para afirmar que a fruta ingerida pelo primeiro casal foi a maçã dos tempos modernos, pela simples razão de que esta fruta, como a conhecemos, há algum tempo, é resultado de experiências e manipulações do fruto por largo período após a ocorrência do caso bíblico narrado no Livro Sagrado de modo que ele hoje se mostre tal qual é. A fruta que poderia corresponder à maçã de agora era bem diferente, à época de Moisés.5
Entretanto, por conta desta lenda, nos acostumamos a ver neste fruto um dos símbolos do pecado, embora esta perfeita criação de Deus não possua nenhuma característica ou sabor que possa sequer sugerir tal associação e seria mesmo um absurdo, pois tudo na Natureza visa o nosso bem. Mas, se fizermos uma analogia com as más escolhas que fazemos corriqueiramente, é preciso parar de consumir tais maçãs, pois enquanto mantivermos o hábito de comer da árvore do conhecimento do bem e do mal, o ritmo da evolução do planeta diminuirá e o Jardim de Éden não se fará presente, tão cedo, nesta Casa do Pai.
A escolha é nossa!
Referências:
1 BÍBLIA DE JERUSALÉM. Diversos tradutores. 3. imp. São Paulo: Paulus, 2004. Gênesis, 2:17.
2 Disponível em: Feliz ano novo - Acesso em: 29 jul. 2025.
3 XAVIER, Francisco Cândido. Família. 1. ed. São Paulo: CEU, 1981. Liberdade e expiação. pág. 195.
4 FRANCO, Divaldo Pereira. Loucura e obsessão. Pelo Espírito Manoel P. de Miranda. Rio de Janeiro: FEB, 1990. cap. 9. pág. 116.
5 Disponível em: BBC português - Acesso em: 29 jul. 2025.

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