Espiritismo à brasileira: esvaziamento da sua dimensão filosófica e científica? - Leonardo Leite
Desde sua codificação por Allan Kardec, o Espiritismo se apresentou como uma doutrina de três pilares indissociáveis: ciência, filosofia e religião. No entanto, no processo de consolidação do Espiritismo no Brasil, país onde a doutrina mais se difundiu globalmente, houve um desequilíbrio perceptível entre esses fundamentos. O aspecto religioso se fortaleceu com intensidade, enquanto os campos filosófico e científico foram, muitas vezes, deixados em segundo plano. Isso gerou uma prática espírita com forte viés devocional e moralizante, por vezes distanciada da proposta original de uma fé raciocinada alicerçada em estudos constantes e aprofundados da realidade espiritual.
Tal fenômeno está intimamente ligado ao contexto cultural e religioso do Brasil, marcado historicamente por uma religiosidade de base católica, emotiva e popular, herança da colonização portuguesa. O sincretismo com tradições afro-brasileiras acrescentou riqueza simbólica e diversidade às expressões espirituais, mas também reforçou uma compreensão da fé muito centrada na busca por proteção, curas e bênçãos imediatas. Nesse ambiente, a proposta kardecista de aliar fé e razão, convidando o ser humano a refletir profundamente sobre sua trajetória espiritual, acabou sendo absorvida por uma lógica mais afetiva do que científico-analítica.
A filosofia espírita — com sua visão progressista do espírito imortal, sua ética da responsabilidade e sua leitura espiritual das leis da vida — é uma das grandes riquezas da doutrina. No entanto, ela ainda é pouco explorada em muitos centros e espaços de estudo. Em seu lugar, predominam abordagens mais voltadas ao consolo imediato e à moral cotidiana, o que, embora valioso enquanto prática humanista, não dá conta da profundidade filosófica proposta por Kardec. Recuperar esse eixo é fundamental para ampliar o alcance formativo do Espiritismo e fomentar a autonomia espiritual do indivíduo.
No campo científico, a situação é mais precária. Embora Kardec, nos primórdios do movimento que deu origem à Doutrina Espírita, tenha se apoiado no método observacional e tenha tratado os fenômenos espirituais através das lentes de uma ciência de observação dos fenômenos espirituais, esse esforço primordial foi praticamente abandonado no Brasil. A tradição experimental, que deu origem às pesquisas metapsíquicas e parapsicológicas na Europa, não encontrou terreno fértil aqui. A maioria dos centros espíritas desdenha do método científico ou sequer compreende sua importância, preferindo uma abordagem mística e fideísta, com exaltação dos “fenômenos” e forte apelo emocional. O resultado é um Espiritismo que fala em ciência, mas não a pratica — e que rejeita, quando não ridiculariza, o pensamento científico secular.
É importante reconhecer que o Espiritismo brasileiro tem realizado avanços significativos no campo moral e assistencial, com obras de caridade, acolhimento fraterno e promoção de valores como empatia, solidariedade e perdão. No entanto, para que se mantenha fiel à sua proposta original, é necessário avançar também na promoção do pensamento crítico, do estudo rigoroso e do diálogo entre saberes. O desequilíbrio entre os três pilares não é uma falha definitiva, mas um convite à retomada consciente de caminhos que já estão presentes na codificação.
Superar a predominância exclusiva do aspecto religioso não significa negar sua importância, mas sim integrá-lo de forma mais harmônica com os outros dois alicerces. A religião espírita, em sua essência, não se confunde com rituais ou dogmas, mas se ancora na vivência do bem, no esclarecimento espiritual e no cultivo da consciência. Reforçar a dimensão filosófica e científica, portanto, não enfraquece a fé: ao contrário, a enriquece e a torna mais lúcida, madura e transformadora, e em total sintonia com as raízes da doutrina. Afinal, como afirmou Kardec com clareza e coragem: “Fé inabalável é somente aquela que pode encarar a razão face a face, em todas as épocas da Humanidade.” Que o Espiritismo brasileiro reencontre esse caminho de equilíbrio — não como ruptura com sua história, mas como continuidade fiel ao espírito da obra que lhe deu origem.
Desse modo, ao fortalecer os vínculos entre filosofia, ciência e espiritualidade, o Espiritismo pode se afirmar como uma doutrina verdadeiramente integral, capaz de dialogar com os desafios contemporâneos sem perder sua essência. Essa é uma tarefa que exige estudo, dedicação e humildade, mas que pode trazer frutos profundos para o movimento espírita e para cada consciência em busca de evolução.
Para resgatar a integridade do Espiritismo como doutrina de tripé equilibrado, seria preciso um esforço deliberado de reintrodução da filosofia e da ciência nos espaços de prática espírita. Isso exige formação crítica, estudo sério das obras kardecistas em diálogo com o pensamento contemporâneo, abertura ao debate e, sobretudo, coragem para romper com o conforto do moralismo dócil que tantas casas espíritas oferecem. É tarefa ingrata, mas indispensável, se a proposta kardecista quiser manter sua relevância diante dos desafios de um mundo que exige, mais do que nunca, razão com espírito e espiritualidade com lucidez.
Sem esse resgate, o Espiritismo no Brasil seguirá sendo o que hoje é: uma religião entre tantas, moldada ao gosto popular, esvaziada de sua radicalidade original, incapaz de interpelar o presente com a força de uma doutrina que nasceu justamente para integrar saber, sentido e transcendência — e não para reproduzir, com novos nomes, as velhas fórmulas do conformismo típico das religiões “tradicionais” que o antecederam.
Leonardo Queiroz Leite reside em Franca, SP
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