Francisco da Silveira Bueno

O professor Francisco da Silveira Bueno nasceu em Campo Largo de Atibaia, hoje Jarinu, no dia 20 de agosto de 1895. Era filho de Alexandrino da Silveira Bueno.

Iniciou seus estudos em Atibaia, matriculando-se no Grupo Escolar José Alvim, no ano de sua inauguração, 1905. Transferiu-se depois para o Grupo Escolar Coronel Leme, onde concluiu o primário.

Os cursos secundários foram feitos no Seminário Metropolitano de São Paulo e no Colégio Abadia de Averbode, na Bélgica. Os cursos superiores foram feitos no Seminário Maior de São Paulo e na Universidade Gregoriana de Roma.

Iniciou na carreira eclesiástica (estudando filosofia, teologia, direito canônico, exegese em bíblica e línguas, especializando-se em linguística e pesquisa filológicas), da qual desistiu para dedicar-se ao magistério, lecionando Português, Latim, História, Califasia (dicção e oratória), calirritmia, califonia e Literatura Portuguesa. Foi professor catedrático da Universidade de São Paulo.

Foi redator de vários jornais e colaborador em quase todos os órgãos da imprensa do Rio de Janeiro e São Paulo. Atualmente, seus dicionários têm Dinorah da Silveira Campos Percoraro, doutora em filologia portuguesa pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, como responsável pela revisão e ampliação.

Com o pseudônimo de Frei Francisco da Simplicidade, publicou Cartas esquecidas, Cristo e as mulheres, Os que muito amaram, O perfil de Dom Duarte Leopoldo e Silva e Lucrécia Borgia. Participou de congressos científicos no Brasil e no exterior, representando a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (FFCL/USP).
 

SILVEIRA BUENO E OS FENÔMENOS ESPÍRITAS

Fenômenos espíritas ele os observou deste a infância. Muitos fatos espíritas vividos por Silveira Bueno foram por ele próprio narrados na casa de seu sobrinho, o crítico literário Homero Silveira; casos íntimos, não divulgados pelos jornais. A mediunidade de Silveira Bueno parece ter-se manifestado quando não completara ainda oito anos, segundo Homero Silveira.

Com esta idade, certa vez, em Atibaia, o menino Silveira Bueno subiu pelo tronco de uma árvore, ajeitou-se e, lá em cima, cochilou. Quando sua família voltou do centro da cidade, onde assistira a um casamento, o menino confessou que também “vira” a cerimônia e deu detalhes, deixando os parentes boquiabertos.

Embora não se tenha tornado espírita (pelo menos, espírita declarado), o ilustre autor de A formação histórica da língua portuguesa jamais escondeu de seus amigos esses fenômenos e fez questão mesmo de divulgá-los, amplamente, através da imprensa. Esta atitude – louvável em todos os sentidos, porque denota coragem moral para enfrentar os preconceitos religiosos – Silveira Bueno a manteve desde 1928, quando, pela primeira vez, fez publicar, pelas páginas do Jornal então dirigido por Mário Guastini, um curioso relato sobre a aparição do espírito de seu tio: aparição tangível vista por vários parentes seus, inclusive, pelo próprio Silveira.

Dos vários fenômenos observados pelo professor Silveira Bueno (alguns produzidos pela sua mediunidade), transcreveremos dois pessoais e um outro que lhe foi narrado “por pessoa de probidade indiscutível”. Os três, porém, trazendo a sua assinatura, o que lhes dá validade.

Eis o primeiro, que trata da materialização de seu tio Osório:

Fazia frio e, acendendo a lareira da fazenda antiga, conversávamos todos de coisas passadas. A noite é sempre a grande evocadora dos fatos extintos, das figuras que impressionaram, um dia, a nossa emotividade infantil ou adolescente. Na vida, só há uma quadra que não recorda – a mocidade, porque traz no futuro os seus olhos, deslumbrada pelo que há de ver ainda. A idade viril, então, e, principalmente, a velhice, vivem das sombras que agitaram outrora, iluminadas pelos reflexos de tudo o que foram e que jamais poderão ressuscitar. As suas vistas voltam-se constantemente ao pretérito. Há na poeira das estradas percorridas qualquer fantasma que as atrai. Na cinza que a recordação costuma soprar, pelos dias mortos, há olhos que lucilam, mãos que acenam, há lábios que se entreabrem para o mais irresistível dos apelos. E metade dos homens vive entre essas torturas do passado.

Naquela noite, sob a impressão da tempestade amainada, sob a cantilena impressionante das águas a cair no monjolo velho, os idos tempos de São Paulo repontavam cheios de curiosidade, falseando de interesses para nós, adolescentes imaginosos, a transbordar de profundas emoções para o narrador.   Meu pai recompunha para gáudio nosso e íntima satisfação da sua própria fantasia, a época em que fora rapaz, quando morador do Brás de antigamente, ia domar novilhos na chácara do Pari e, à noite, pregava sustos ao preto Manuelão, doceiro de Sinhazinha Machado.   Como era outra a vida pacata e inalterável do mais febril dos bairros paulistas! Poucas ruas, grandes chácaras, novidades nenhumas, algazarras de estudantes pelos quartinhos de Monsenhor Anacleto e a bulha inofensiva dos tipos populares do tempo. Lá, uma vez ou outra, um valentão que aparecia, um negro fugido, um casal de namorados que batia as asas e nada mais. O grande acontecimento era a festa da Penha, fato que abalava o Sul todo e transformava São Paulo em uma bela cidade movimentada. Uma vez teve de brigar com o Coronel Barbosa, velho beato, que todo ano monopolizava as varas do pálio distribuídas aos da sua família, ou às andas do andor milagroso, que só podiam descansar em ombros de sua gente. Brigou e, com o auxílio do mano Osório, venceu, carregando ambos a charola da Nossa Senhora. Em todas as peripécias surgia sempre a figura do meu tio Osório, grata personagem aos nossos olhos, completamente, porém desconhecida naquele lar.

– Mas que foi feito do tio Osório?

– Nem eu sei. Mais velho do que eu, muito mais robusto e alto, seguiu pelo mundo, acompanhando o pendor aventureiro de que nasceu dotado. Há mais de dez anos, que numa noite como esta, apareceu aqui. Já não era mais aquele Osório de outros tempos: os sofrimentos haviam desfeito a corpulência de lutador que possuíra. Alegre ainda, revivemos inúmeros episódios da nossa mocidade e um dia, quando menos se esperava, desesperou por sair e se foi. Havia no seu destino um braço que o tangia sempre para diante, porque era uma verdadeira tortura o desespero de correr mundo, que o compelia por estas estradas mal percorridas e pior habitadas. Nunca mais soubemos dele, nem se vive ou se já morreu...

A voz de meu pai velou-se de tristeza e notei que as lágrimas lhe davam aos olhos um brilho de intensa emoção.

– Para que fomos recordar o Osório! Talvez que já não exista. Como teria morrido? Haveria tombado em qualquer ponto de um caminho? Quem lhe teria cruzado os braços, acalmado a angústia da agonia? E se vive ainda, como estará, bem mais velho do que eu, pobre e trabalhado pelas privações da vida errante?

Lá fora, a chuva caindo, fragorosamente, o som do monjolo velho, aumentava ainda mais a desolação que de nós se apoderava. O medo surgiu imperceptível em cada ouvinte, não se atrevendo os menores a olhar para o corredor da entrada, como se dali fosse correr até a lareira qualquer fantasma horrível. A hora da noite se adiantara muito, havia sono, mas ninguém tinha a coragem precisa para dirigir-se ao quarto de dormir. Como acontece em tais momentos, um longo e pesado silêncio caía sobre nós, como se fosse um manto de chumbo. Só no beiral da casa o vento resmungava zangado ou vinha gemer doloridamente nas frestas das portas e das janelas.

A comoção nos amordaçava a boca e o coração, de desesperado, parecia-nos que já não batia mais no peito e sim dentro dos tímpanos de cada um. Todos os olhos se haviam baixado, tal qual possuíssem os carvões acesos da lareira um poder magnético irresistível. Nem meu pai falava mais. Alguma coisa de tremendamente apavorante se deveria estar passando em torno de nós. Que seria? De repente, à semelhança de um soco dado à porta, alguém bateu furiosamente, querendo entrar. Um calafrio nos enregelou a todos e, inexplicavelmente; sob o impulso instintivo do socorro, atiramo-nos aos joelhos de nosso pai. Quem haveria de ser? Deveríamos abrir-lhe a porta? Não! As horas eram mortas, a casa uma fazenda e não convinha. Nisto, com mais força ainda bateram de novo e, desta vez, acrescentaram o nome de meu pai:

– Ó de casa! Alexandrino!

Não havia dúvida: tratava-se de pessoa conhecida e era urgente acolhê-la. Foi um alívio... Arre! E uma intensa curiosidade nos transportou a todos para o corredor, a fim de ver quem chegava, naquele momento, sob tamanho temporal.

Para clarear o trajeto, eu levava um lampião à altura da minha cabeça, para que do alto a luz abrangesse maior extensão. Quando a porta se abriu, no clarão da luz pudemos distinguir o vulto grande de um homem envolto numa pala, chapéu largo, molhado. Depois, a atitude arrebatada do nosso progenitor, que dentro de uma formidável exclamação de surpresa, atirava-se nos braços do desconhecido...

Era o tio Osório!

Imaginem como ficamos, quando fomos apresentados, justamente, ao quase pranteado morto e desaparecido muito saudoso.

– Ora, veja, dizia meu pai, de que maneira se dispõem as coisas: agorinha mesmo, lamentávamos as suas cabeçadas por esses mundos. Eu julgava até que já não existia mais e, entretanto, você tão pertinho de nós. Agora, diante destas crianças eu juro que não será mais assim. Há nesta casa aposentos e fartura demais para você. Chega de quebrar a cabeça de encontro ao destino.

E a alegria tomou todos os átomos do ar, reacendendo-se o fogão para a ceia, trocando-se a roupa a escorrer por outra enxuta agasalhante, ressoando a casa inteira de exclamações jubilosas. Eram já três da madrugada, quando nos lembramos de que o tio Osório necessitava de repouso. Foi com intenso prazer que o vimos acomodar-se no quarto dos hóspedes, o melhor da fazenda. E fomos também nós a deitar. Mal se recompusera o silêncio da casa, aí pelas quatro e meia ou cinco da manhã, eis que outros batidos violentos à porta nos alarmaram novamente.

– Quem bateria? Algum outro andante acossado pela chuva?

Sem temor nenhum, eu, o mais velho da família, fui ver quem nos acordava assim. Era um preto alto, muito bem criado, que me entregou uma carta para meu pai. No trajeto para o quarto dele, reparei no envelope: era um telegrama! Para evitar qualquer surpresa desagradável, rasguei a sobrecarta e li:

“Em Sapesal, às duas da madrugada, faleceu Osório Ferreira.”

Osório Ferreira?!... O nosso tio?... Que história! Li melhor, mais atentamente: “...às duas da madrugada, faleceu Osório Ferreira...” seria possível? Não haveria em tudo aquilo uma brincadeira do meu próprio tio Osório? Não queria pregar-nos uma peça? Não estava dormindo no quarto dos hóspedes? Não ceara conosco há uma hora apenas? Não lhe beijamos as mãos e não lhe vimos roupa de agasalho?... Impossível!!

Entreguei o telegrama. Foi um alvoroço: compelidos pela ânsia de primeiro desmentir o comunicado telegráfico, precipitamo-nos para a sala em cujo quarto descansava o tio Osório. Escancaramos as portas... Oh! pavor indescritível... Vazio, completamente vazio! Os lençóis intactos, sem uma prega, o travesseiro sem a menor lembrança de uma cabeça que nele houvesse repousado.

Fora uma visão: o fantasma do tio Osório.

Longe vinha o dia palidamente. Na meia-luz da nossa memória vibratilizada pelas emoções da noite, desfazia-se aos poucos a personalidade misteriosa do hóspede tumular. O seu olhar velado de lágrimas diluía-se como as estrelas derradeiras da manhã, enchendo-nos a alma de uma dor profunda convidando-nos a chorar. E choramos comovidamente.

O professor Francisco da Silveira Bueno faleceu em 2 de agosto de 1989, tendo sido sepultado no cemitério municipal São João Batista, em Atibaia-SP.
 

Fonte:

Escritores e Fantasmas, de Jorge Rizzini,



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